domingo, 4 de novembro de 2012

XAMANISMO E ANIMAIS DE PODER


Texto de Paulo Urban, médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Em etnias humanas as mais variadas, espalhadas pelos cinco continentes, desde as mais arcaicas até as civilizações contemporâneas, que valorizam o ritualismo mágico e a participação mística do ser humano integrado à natureza, faz-se imprescindível a figura do xamã. Este, universalmente, é reconhecido em seu meio como elo entre nosso mundo terreno e as hostes espirituais, entre o sagrado e o profano, entre os vivos e seus ancestrais.

A despeito do termo ter-se popularizado (sendo aplicado a todo e qualquer curandeiro especialmente detentor do saber médico-religioso de seu povo), o nome xamã, originariamente, é asiático. Diz respeito aos samans, feiticeiros Tungues, um dos povos da família altaica que habitava a região centro-setentrional siberiana na era Paleolítica, cerca de 20.000a.C. O termo é aparentado do sânscrito sramana e do pâlisamana, que designam o “homem inspirado por espíritos”, podendo igualmente significar “esconjurador ou exorcista”.

O xamã é, antes de tudo, o porta-voz oracular de seu povo. É ele o iniciado nos mistérios da natureza, nos segredos dos ciclos de vida e morte, nos fenômenos mórbidos ou climáticos que podem ameaçar sua comunidade. Professando um papel de agente equalizador de forças, mediante sua cumplicidade com a natureza, o xamã detém a sabedoria de interpretar os seus desígnios e escutar os seus apelos a fim de contrapor às vicissitudes e às intempéries da vida seus ritos e passes capazes de reinstaurar a ordem cósmica, garantindo assim a permanência de sua gente ao longo das gerações.

O xamã opera sempre atento aos sinais que possam ser lidos à sua volta; ele ouve as pulsações da terra, compreende o caráter dos ventos e tempestades, entende o que lhe dizem os animais, extrai conhecimento de plantas sagradas, vale-se das propriedades medicinais dos reinos mineral, vegetal e animal que o cerca, e prevê em razão de eventos observados a tendência das ocorrências vindouras.

O universo xamânico, podemos afirmar, é sincronístico; isto é, longe da relação de causa e efeito a que o mundo civilizado ocidental, filho da ciência moderna, acostumou-se a viver nos últimos três séculos de história, o modo de viver xamânico privilegia as sincronicidades. Tal termo, no sentido que lhe deu Jung (1875-1961), diz respeito ao fenômeno de coincidirem no tempo dois ou mais eventos objetivos, claramente perceptíveis na realidade exterior, sem relação causal entre os mesmos, mas que, simultaneamente, são consonantes com algum estado psíquico fortemente emocional, o que permite àquele que presencia tal experiência, abstrair dela algum significado súbito e evidente, capaz até mesmo de subverter suas próximas condutas, ainda que tal entendimento se faça por vias não racionais.

Assim sendo, o xamã é aquele que atualiza em seu contexto cultural uma tendência inata da espécie humana, que consiste em criar símbolos e transformar inconscientemente o significado de objetos, seres vivos ou eventos naturais, de modo a conferir-lhes uma importância psicológica mais profunda (ou mesmo sagrada), para daí fazer uma leitura sincronística dos fenômenos todos que os agreguem.

Tal prática, a paleoantropologia o prova, remonta aos tempos pré-históricos. Inúmeras cavernas do paleolítico apresentam figuras rupestres de animais em câmaras interiores às quais o caminho é bastante dificultado, devendo o visitante arrastar-se por passagens baixas e estreitas, escuras e úmidas, até ficar impressionado diante das pinturas. Evidentemente, locais quase inacessíveis assim, serviam ao propósito de cerimônias ritualísticas reservadas.

As mais interessantes figuras estão na caverna-templo de Trois Frères, sul da França. Nela pode-se ver um homem barbado, com corpo de cavalo, patas de urso e chifres de veado, dançando. Nela também encontramos a figura de outro homem vestindo pele de animais e tocando flauta. Na caverna vizinha, Tuc d’Audoubert, foram descobertas pegadas de um dançarino em torno de um baixo-relevo que mostra dois bisões, e as marcas são de passos dados sobre os calcanhares, de modo a imitar os cascos dos animais. Tudo isso nos revela o quanto a interação dinâmica entre homens e animais sempre marcou profundamente o psiquismo mágico, próprio dos povos que se faziam representar por seus xamanes.

A propósito, o animal, tomado em sua qualidade de arquétipo, representa nosso conjunto de potencialidades e instintos que podem desdobrar-se em dons especiais se devidamente assimilados. Os animais simbolizam, via de regra, forças cósmicas terrenas, trevosas, ou espirituais, e acham-se presentes por todas as mitologias, quer associados à imagem dos deuses, quer ocupando o lugar das próprias divindades.

O poder do xamã, nesse aspecto, decorre do entendimento que se estabelece entre ele e as hostes espirituais que o rodeiam, visto que não se discute que o xamã possa perceber a realidade sutil disfarçada por detrás dos eventos corriqueiros da vida, como por exemplo, o vôo rasante de um pássaro, a passagem de um morcego em hora de sagração ritualística, o rugir de uma fera, a queda de uma árvore etc… A percepção intuitiva xamânica não se limita, obviamente, à esfera animal; toda a natureza pode servir-lhe de texto sagrado, e o xamã interage com o espírito da lagoa, com a força da montanha, com as entidades do fogo e assim por diante. Cite-se aqui o iaque Don Juan, famoso brujo dos livros de Carlos Castañeda: “O xamã é aquele que realiza, graças aos espíritos-guardiões, aquilo que nenhum homem comum conceberia ser possível”.

Em 1996, conheci na Bolívia, num Congresso de Psiquiatria, o xamã Carlos Prado, que esteve em setembro passado visitando o Brasil a convite da revista Planeta. Carlos proferira uma palestra para o meio acadêmico que versava sobre os efeitos terapêuticos da ayuasca no tratamento das drogadependências. A ayuasca é uma das plantas de poder com que Carlos Prado trabalha. Fiquei impressionado com sua clareza e conhecimento, e iniciei ali mesmo uma relação profissional que se estendeu à amizade e, sobretudo, levou-me a uma busca iniciática, que até hoje vem se desdobrando. Em 1998, fui levado por ele ao Tiraque, cidade próxima de Cochabamba. À noite, afastamo-nos do modesto povoado em direção à região campesina. Instalamo-nos em casa de adobe, longe de tudo aquilo que se possa chamar civilização. Bem longínquo, ouvíamos o som de uma zampoña. Pela primeira vez pude então compreender o que vem a ser uma manifestação do espírito-guardião, que muitas vezes apresenta-se sob as vestes de um animal de poder.

Na última passagem de Carlos Prado pelo Brasil, ele me recomendou a seu conterrâneo, o xamã Inti Roman, com quem tenho dado seguimento a meu processo de descobertas pessoais e aprendizado de sua cultura. Dele aprendi, por exemplo, alguma coisa a respeito dos três principais animais totêmicos por excelência do universo andino: o puma, o côndor, e a lhama.

A lhama é o tronco genético da família dos camelídeos, sendo a alpaca, o guanaco e a vicunha os demais componentes de seu grupo. Importantíssimo para a economia andina, deste animal tudo é aproveitado, desde o esterco e a gordura, até a lã. Os camelídeos habitam as altas montanhas e representam a própria Pachamama, ou mãe Terra, posto que são animais serenos, resistentes ao frio, fortes e estáveis. Da vicunha pode-se extrair a lã mais fina, com a qual, antigamente, apenas os nobres Incas podiam vestir-se. Seu surgimento em sonhos e visões traz a idéia de trabalhos e fardos a serem cumpridos, sugere-nos resistir às dificuldades e nos anuncia bom agouro aos novos empreendimentos.

Já o condor, em todas as mitologias da Cordilheira dos Andes, seja em Tiahuanaco, em Chavin de Huantar, nas cerâmicas de Nazca ou pedras de Ica, é uma ave cósmica, portadora de energia solar e simboliza o espírito das montanhas. Relaciona-se ao Uirapuru das florestas amazônicas e é correlato da águia na alquimia. O condor, maior ave de rapina do planeta, simboliza a consciência arguta e desabrochada, de asas abertas, capaz de enxergar com clareza o presente e o futuro. É também ícone de liberdade, de renascimento e sinal de intuição sincronizada à inteligência.

O puma, animal caçador de hábitos noturnos, por sua vez, é contraparte do condor. Simboliza a essência feminina e comumente é visto representado com um meio-disco preso ao pescoço, sugestivo do elemento lunar. Podemos dizer, condor e puma compõem o “tao” andino, já que respectivamente são exemplos das energias opostas primordiais, de onde tudo se deriva: K’onhi (yang, ou o quente) e Tchiri (yin, ou o frio).

Claro, muitos outros animais existem dentro ou fora do mundo andino, e todos eles se prestam para nos impressionar o psiquismo ou assumir a função de espíritos-guardiões. Mais adiante daremos um quadro sumaríssimo de alguns desses animais que freqüentemente nos visitam em nossos sonhos. Cada animal traz os talentos que lhe são inerentes. Sempre que os vislumbramos, quer em sonhos, quer em visões ou exercícios de imaginação ativa, conforme nos ensinou Jung, não deveríamos desperdiçar a chance de explorar em nosso mundo interior os aspectos para os quais eles chamam nossa atenção. Muitas vezes o surgimento de certos animais propõe que focalizemos a consciência sobre determinado modo de agir, em razão do que, a partir dessa nova percepção, somos inspirados e melhoramos nossa conduta.

A maneira mais eficiente de identificarmos nosso animal de poder (aquele que prevalece em nossa mitologia pessoal e nos acompanha pela vida, e que reaparece sempre que estamos precisando rever ou descobrir certos passos do caminho), sem dúvida alguma, é mediante a ingestão de bebidas sagradas, ampliadoras da consciência, potencializadoras do psiquismo. Na falta dessa oportunidade, Inti Roman nos ensina um exercício doméstico proveitoso, para ser feito com seriedade após um dia tranqüilo, durante o qual podemos nos preparar mediante jejum (aconselhável, mas não necessário) e bons pensamentos:


1. Prepare previamente um ambiente reservado (pode ser o quarto de dormir) com incenso, iluminação de velas e música suave.
2. Ao iniciar sua harmonização, tome um copo d’água e respire fundo por algumas vezes até perceber-se bem calmo e relaxado.
3. Relaxe o corpo, focalizando sua atenção parte a parte, de baixo para cima; isto é, relaxe primeiro os pés e aos poucos vá relaxando todo o corpo até chegar à cabeça.
4. Coloque música motivacional. Dê preferência à música xamanica ou indígena, com instrumentos de sopro e tambores se possível. Qualquer música harmônica e inspiradora, na verdade, serve.
5. Feche os olhos e deixe-se levar pelo som e perfume do ambiente. Imagine-se em algum lugar em meio à natureza; poderá ir às montanhas, à praia, à floresta, enfim, a qualquer lugar…
6. Mantenha-se receptivo e esteja atento às imagens que surjam nessa experiência e nos sonhos das próximas noites, até que determinado animal prevaleça e se torne presente de modo significativo para você.
7. Explore, com todo o respeito, todas as possibilidades de diálogo e aprendizado que poderá ter consigo mesmo a partir da percepção de seu animal de poder.
8. Agradeça à natureza e aos animais por terem você como amigo.
9. Agradeça às possíveis graças recebidas ou idéias intuídas.

Obs: Não se preocupe nem fique ansioso para encontrar seu animal de poder. Se proceder corretamente, em momento oportuno ELE encontrará você!

Um comentário:

  1. Muito esclarecedor e étnico. Numa visão espiritual da imensa dimensão do ser Xamã. Que vai além de ritos e crenças. É a própria revelação da dimensão divina no homem nativo. Dentro da beleza e pureza de alma. De quem busca respostas para a existência, a vida e a morte. Agradecido! Somos índios, ameríndios, nativos, Amazônidas e humanos

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